domingo, 18 de abril de 2010

DUAS VEZES FAVELA - POR BORIS FAUSTO



A imensa tragédia nos morros do Rio de Janeiro relembra o quanto as favelas cariocas fazem parte do imaginário dos brasileiros. Começando pela sua origem e por sua designação, elas têm uma história peculiar e centenária.

Embora haja controvérsias a respeito, parecem ter surgido, por volta de 1897, como local de moradia, oferecido pelo governo aos soldados que regressavam da campanha de Canudos [na Bahia].

Não por acaso, a designação "favela" foi dada por esses soldados que, nas proximidades do arraial de Canudos, acamparam num morro, chamado de morro da Favela, em referência a um arbusto resistente, muito conhecido nas zonas secas do Nordeste.

Muito cedo as favelas foram encaradas pelas autoridades como um local habitado por gente perigosa. Alba Zaluar e Marcos Alvito, organizadores do livro "Um Século de Favelas" (ed. FGV), transcrevem, na introdução, uma significativa carta de um delegado dirigida ao chefe da polícia do Rio de Janeiro, datada de 4/11/1900.

A carta é uma resposta ao chefe da polícia, determinando que se verificasse uma denúncia do "Jornal do Brasil" segundo a qual o morro da Providência [local no Rio de Janeiro onde soldados que lutaram em Canudos se instalaram] estava infestado de vagabundos e criminosos que sobressaltavam as famílias.

Diz o delegado que "(...) é ali impossível ser feito o policiamento porquanto, nesse local, foco de desertores, ladrões e praças do Exército, não há ruas, os casebres são feitos de madeira e cobertos de zinco e não existe, em todo o morro, um só bico de gás, de modo que para a completa extinção dos malfeitores apontados torna-se necessário um grande cerco, (...) de pelo menos 80 praças devidamente armados".

Com uma distância de 50 anos, o editorial da revista "Anhembi", de responsabilidade do escritor e jornalista Paulo Duarte, fala da vitória de Getúlio Vargas nas eleições presidenciais de 3 de outubro de 1950, vinculando-a, no Rio de Janeiro, ao "meio milhão de miseráveis, analfabetos, mendigos famintos e andrajosos, espíritos recalcados e justamente ressentidos, indivíduos tornados pelo abandono homens boçais, maus e vingativos, que desceram os morros embalados pela cantiga da demagogia, (...) para votar na última esperança que lhes restava: naquele que se proclamava o pai dos pobres, o messias charlatão".

Idealização do morro

O reverso da demonização da favela veio pela mão do cinema e principalmente da música popular. No caso do cinema, uma referência lendária é o filme "Favela dos Meus Amores", de 1935, do qual, se não estou enganado, não sobrou uma só cópia. Dirigido por Humberto Mauro, com a colaboração de Henrique Pongetti, sua trilha musical era feita de canções e sambas de Ary Barroso, Custódio Mesquita e Orestes Barbosa, entre outros.

Milhares de sambas tematizaram a favela, em fases que têm a ver com a história do país, onde predominam ora a idealização romântica (as cabrochas, os barracos sem trinco, a proximidade do céu), ora a violência (dos marginais ou da polícia), ora o protesto contra as injustiças sociais. Isso foi muito bem mostrado por Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense Marcier num ensaio intitulado "A Palavra É Favela", que se encontra no livro já citado de Zaluar e Alvito.

Curiosamente, Noel Rosa [1910-37], um dos grandes da música popular brasileira, tematizou quase todos esses aspectos, inclusive na célebre polêmica com Wilson Batista, respectivamente na defesa e na condenação do malandro.

Nos versos da música popular, encontramos às vezes um apelo para que a cidade enfrente o problema da favela e da habitação popular. É o caso de "Barracão", a célebre canção de Luiz Antonio e Oldemar Magalhães, que não eram compositores do morro, mas sabiam o que diziam: "Ai, barracão/ Pendurado no morro/ Vai pedindo socorro/ À cidade a seus pés".

Bela inversão, em que uma cidade, geograficamente submetida, tem, no entanto, socialmente, uma posição dominante com relação aos habitantes lá do alto.

Até que ponto o pedido de socorro, diante da catástrofe atual, será ouvido? Até que ponto o problema será enfrentado com um misto de humanidade e competência técnica, à margem da falsa dualidade "remoção ou urbanização", que percorre a história das favelas, como se todas as situações -na realidade, muito diversas- fossem idênticas?

A folha corrida do poder público, onde consta o crime do esquecimento de tantas e tantas tragédias, não me permite ser otimista. Mas quem sabe -assim espero- eu esteja completamente enganado.

Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1804201009.htm> Acesso em 18/04/10

Um comentário:

  1. muito interessante e realista a análise, desapaixonada da situação das favelas, já denunciada por Vinicius de Moraes na peça "Orfeu da Conceição"

    ResponderExcluir